Personagem com múltiplos interesses e habilidades, Hercule Florence (1804-1879) ficou conhecido tanto como “artista viajante” quanto inventor.
A mais célebre de suas criações foi a fotografia, por ele descoberta em 1833.
Nascido em Nice em 1804, criado em Mônaco e imbuído de grande curiosidade científica, Hercule Florence chegou ao Brasil em abril de 1824. Com apenas 20 anos de idade foi contratado como desenhista da Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, empreendida pela equipe liderada pelo conde von Langsdorff.
Partindo do Rio de Janeiro em 3 de setembro de 1825, Hercule Florence percorreu mais de 13.000 km pelos Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará (a maior parte navegando pelos rios Tietê, Paraná, Paraguai, Tapajós e seus afluentes), documentando em textos e desenhos suas impressões sobre a paisagem, os índios, a fauna e a flora.
É a partir de seus registros que se organiza a exposição O Olhar de Hercule Florence sobre os Índios Brasileiros (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, do 6 de maio a 30 de junho de 2015).
Comece essa aventura
Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas, através das províncias brasileiras de São Paulo, Mato Grosso, e Grão-Pará.
(1825-1829)
A 3 de setembro de 1825, partimos do Rio de Janeiro. Um vento fresco ajudou-nos a vencer, em 24 horas, a travessia de 70 léguas, até Santos [...].
Cidade de 6.000 habitantes, Santos é o primeiro porto da província, o mais importante [...].
Cubatão, povoado composto de 20 ou 30 casas, a que se podia acrescentar antigo convento de jesuítas, funcionava, quando por ali passei, como entreposto de mercadorias procedentes de Santos, tanto quanto do interior.
Parti para Porto Feliz. Vi o salto de Itu. [...] O Tietê tomba fragorosamente, entre rochas a pique, transformado em espuma, salta, e ele se despreende branco vapor, levado, pelo vento, para o verdor da mata [...].
As salvas de mosquetaria, partidas da cidade e as que, em resposta, saíam de nossas embarcações, atroavam os ares, para satisfação de um povo inclinadíssimo a queimar pólvora.
Dia 26, passamos pela cachoeira dos Pilões e, antes do meio-dia, aproamos a Pirapora, povoado à margem esquerda do Tietê, o último, aliás, que se vê junto ao rio.
Contam-se 300 habitantes, se tanto. Um terço deles, mais ou menos, não passa de escravos.
Surge enfim aos nossos olhos, em 30, o tão desejado porto de Cuiabá. [...] Raras pessoas transitam pelas ruas. Não é de admirar: a cidade rodeia-se de infindáveis sertões.
Assistimos, na igreja, a solenidade religiosa e, em seguida, fomos à casa do festeiro, que nos aguardava com muito bem servida mesa de doce. Seus escravos executaram, logo que finda a comezaina, uma dança típica da terra africana de onde provieram e, no decurso do dia, percorreram a cidade, dançando nas ruas e nas casas.
[...] divisamos uma piroga em que se alojavam mais ou menos vinte elementos dessa tribo. [...] Ao darem conosco, saúdam-nos aos berros.
Basta descer um pouco e tomar a esquerda, para o viajante ir dar a uma plataforma de rochedos, da qual se vê a catarata em suas totais dimensões, que a fazem célebre, assim suas três quedas e os perigos que aí se enfrentam.
Atacadíssimos pela doença, permanecem privados da mínima ação os Srs. de Langsdorff e Rubzoff. Tão fracos se sentem que lhe é impossível abandonar a rede. [...] Somos unicamente 15 os que nos conservamos com saúde, num conjunto de 34 pessoas, das quais apenas oito se livraram das sezões.
"Ingente trabalho deu [...] o arrastamento da primeira canoa até dois terços do caminho [...]. A parte restante do dia e a primeira metade do seguinte foram ocupadas com o conserto das avarias. [...] Sr. de Langsdorff tenciona deter-se uma légua mais abaixo, na mata conhecida por Tocarizal, para que se construa uma canoa, que facilitará a remoção das bagagens e provisões assim retidas."
Andam nus, à semelhança dos apiacás. Raspam os cabelos, conservando em cima da testa, contudo, uma espécie de crista de pelos, curta e redonda. [...] Enegrecem o rosto, de diversas maneiras, com o genipapo, cujo suco fornece cor parecida com a tinta de escrever.
Metemo-nos pelos rebojos, isto é, curvas formadas pela queda d´águas, que não têm direção certa, dada a sinuosidade dos sulcos que marcam o terreno. As águas explodem do fundo e expandem-se em bolhas como azeites a ferver.
Segue-se a passagem de cachoeira Misericórdia e, na manhã do dia posterior, a arribada à de São Florêncio, uma das maiores destes sítios. Cheia de mato, uma ilha divide-a em dois braços; à jusante, termina-a bela praia, onde comodamente estabelecemos parada.
Bela cidade é Santarém, situada na confluência do Tapajós com o Amazonas. Localiza-se à margem oriental do primeiro desses rios, em terreno plano, com suave inclinação para a água.
Santarém possui seu aldeamento de índios, como quase todas as localidades da província. Situa-se ele, aqui, do lado ocidental, e um grande terreno, tendo em derredor umas poucas casas, separa-o da parte mais povoada, com características urbanas.
De Gurupá por diante começamos a navegar em braços muito estreitos. As margens estavam cheias de palmeiras açaís, umas carregadas de cachos de meio metro de comprido e formados de cocozinhos do tamanho de um bago de uva. [...]
Bonita é a cidade. [...] Uns trinta navios mercantes ingleses, norte-americanos, portugueses e brasileiros, um francês, um sardo, dois brigues de guerra, da marinha brasileira, e um francês [...] estão fundeados na baía.
[...] dez dias após a chegada do Sr. Riedel, partimos para o Rio. [...] Dois dias depois de termos perdido de vista a terra, continuávamos a tirar do mar água doce, para saciar a sede. Decorridos quinze dias, quase naufragamos, por imperícia do capitão, num escolhos da costa maranhense. [...] Felizmente, ao cabo de 45 dias de travessia, arribamos ao Rio de Janeiro.