Artigo de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa estuda o surgimento da categoria da Arte de Viajantes no âmbito das expedições científicas do Século das Luzes, até se constituir num gênero artístico que, nas primeiras décadas do Oitocentos, foi ganhando autonomia e definição
Por Pablo Diener e Maria de Fátima Costa*
Nas últimas décadas as obras de artistas-viajantes têm sido foco de muitas investigações e exposições. Estudiosos nos mais distintos ramos do saber têm se debruçado sobre elas, procurando entender seus significados ou os motivos que ali estão representados.
Deslocando-se solitários ou em expedições naturalistas, estes artistas costumavam apreender os diferentes lugares com suas paisagens naturais e urbanas, tipos humanos, ritos de vida, enfim tudo que coubesse nas pequenas folhas de suas cadernetas de bolso, os carnet de Voyage, ou nas suas pastas de desenhos. Era ali que, a lápis, a aquarela e mesmo a óleo, o viajante registrava em primeira mão as impressões que os lugares lhes causavam. Entretanto, a obra propriamente tal só seria elaborada depois, em outro momento, geralmente no retorno. Já nos espaços seguros de seus ateliês é que estes artistas, retomando os seus esboços, davam forma à obra. Esta, quase sempre, representava uma vista de paisagem na qual a vegetação harmonizava-se com relevos e figuras humanas, em cenas costumbristas.
Estas obras, então, configuravam-se em uma categoria nova no campo da História da Arte. Surgidas timidamente no final do século XVIII, no interior das expedições científicas, mais propriamente nas viagens de circunavegação, ganharão seu novo status no decorrer do século seguinte.
Nas expedições do Século das Luzes os lápis e pincéis eram manejados por ilustradores, documentadores. Cabia a estes a função de levar ao papel as imagens que botânicos, geógrafos, zoólogos e demais cientistas das expedições lhes indicassem. À obra do documentador não se atribuía um valor por si mesma; era uma complementação, mas essencial, à grande catalogação que os circunavegadores realizavam. Será no início do Oitocentos que este personagem vai se metamorfosear em artista. Mesmo que ainda o encontremos no interior de empresas científicas, mais e mais vão surgindo figuras que solitárias, ou ocasionalmente, em pares, viajam pelo prazer de ver e registrar, a partir de suas próprias motivações. Embora ainda não se soubesse, ali estavam os artistas-viajantes.
Desconhece-se ao certo quem foi que cunhou esta palavra-conceito, mas tudo indica que tenha surgido no México na segunda metade do século passado, justamente para designar a obra de tantos estrangeiros que na metade dos anos de 1800 acudiram às antigas terras mexicas, e logo ganhou o universo conceitual latino-americano. Hoje o termo faz parte do vocabulário dos historiadores de todo o mundo.
Porém, o formulador intelectual deste gênero das artes plásticas foi Alexander von Humboldt. Devem-se aos escritos deste viajante os pressupostos teóricos sobre a arte realizada em viagem. Fui ele quem - apesar de não ter usado a expressão artista-viajante - definiu um espaço claro para o trabalho dos ilustradores alforriando-os dos ditames impostos pelas expedições científicas do Setecentos, nas quais eram submetidos a desempenhar um papel totalmente subordinado. Foram as suas idéias que outorgaram autonomia ao registro visual realizado pelos viajantes e deram a esse trabalho o status mais condizente com as pretensões de um artista do XIX.
Mas, a proposta estética de Humboldt está baseada na tradição classicista. O naturalista prussiano encontra seus arquétipos de beleza na antiguidade clássica e sua busca de novos rumos para o desenvolvimento das artes se apresenta associado ao historicismo. É a partir desta perspectiva que passa a definir o papel que a arte, especificamente a pintura e a literatura, podem desempenhar quando associadas com as ciências. Já nos escritos programáticos com que inicia a publicação dos resultados da viagem que realizou a América, ou seja, no Essai sur la géographie des plantes (Paris, 1805) e no artigo "Ideen zu einer Physiognomik der Gewächse" (em Ansichten der Natur, Tübingen, 1808), Humboldt enuncia o valor de síntese que a pintura possui como linguagem para a compreensão da Natureza. É ainda nestas obras que ele propõe uma inovação na pintura de paisagem. Mas o seu pensamento se formula mais inteiramente na sua grande e última obra Kosmos.
Neste livro, considerando a Natureza como mestra, convida aos pintores para dar forma aos seus pressupostos, seduzindo-os nos seguintes termos:
E por que há de ser vã nossa esperança? Nós acreditamos que a pintura dos países deve brilhar com um esplendor até hoje desconhecido; isto acontecerá quando engenhosos artistas ultrapassem com mais freqüência os estreitos limites do Mediterrâneo, se distanciando das costas, e quando lhes seja dado abarcar a imensa variedade da Natureza nos úmidos vales dos trópicos, com a nativa pureza e frescura da juventude.1
Ainda em vida o naturalista chegou a ver satisfeitas suas esperanças. A revitalização da pintura de paisagem que promove tem um alcance geral, porém na medida que define o mundo tropical como o melhor modelo para este gênero, sua proposta ganhará ressonância especialmente entre os artistas que hoje denominamos de artistas-viajantes. A América tropical é a que, em sua opinião, oferece os motivos pictóricos por excelência.
A nova situação política que vivia o continente americano no período pós- independência permitiu que já durante as primeiras décadas do século XIX ocorresse um considerável aumento do fluxo de visitantes estrangeiros aos lugares que anteriormente eram cativos das potências coloniais espanhola e portuguesa. Porém ainda antes da completa abertura destas fronteiras, Humboldt passará a ser reconhecido como um dos pioneiros no reconhecimento e difusão da América Espanhola. De fato, foi ele o primeiro não espanhol que teve um acesso praticamente ilimitado a esse âmbito geográfico e, ademais, pode consultar todas as fontes que precisou.
A enorme fama que este viajante alcançou como americanista é fruto do intenso trabalho que realizou levando a público uma série de obras com os resultados da sua viagem. Isto facilitou que seus postulados servissem de guia, tanto em relação às rotas que se deviam seguir, como à forma com a qual os lápis e pinceis dos artistas-viajantes deviam apreender a natureza. Sua influência mais patente e imediata se manifestou entre franceses e alemães, porém logo se estendeu a todo o continente europeu e chegou inclusive a determinar o rumo do trabalho artístico de numerosos pintores dos Estados Unidos.
Neste artigo se estuda o papel exercido por Alexander von Humboldt como formulador dos pressupostos teóricos e metodológicos da arte de viajantes, e analisa- se este novo gênero como uma forma de linguagem artística de caráter conservador. Isto porque, ao revisar os escritos deste naturalista percebemos que a revolução que propõe parte de um pensamento estético que, para o século XIX, deve ser qualificado como conservador.
Humboldt e a tradição artística de sua época
Em 17 de setembro de 1860 teve início em Berlim o leilão dos bens artísticos que haviam pertencido a Alexander von Humboldt. O catálogo da venda oferece uma lista de 490 itens (alguns compostos por várias peças), que inclui obra gráfica, pinturas, aquarelas e desenhos, fotografias, esculturas, medalhas e moedas, assim como belos objetos de uso doméstico.2
Certamente devemos ser cautelosos ao analisar esse legado, uma vez que no sentido estrito talvez não seja 'a coleção de arte' de Humboldt. Melhor seria interpretá-la simplesmente como um conjunto de objetos artísticos que aquele viajante foi acumulando durante sua longa vida. Há peças que adquiriu a partir de decisão pessoal, mas também há aquelas que recebeu de amigos e admiradores, as quais conservou em seu poder, seja por lhes atribuir um valor artístico ou simplesmente por razões sentimentais. Dentre as obras de arte que possuía, encontram-se algumas realizadas por Albert Berg, Johann Moritz Rugendas, Ferdinand Bellermann e Eduard Hildebrandt, vale dizer, pelos mais destacados artistas-viajantes alemães que se relacionaram com Humboldt. Também há um exemplar do álbum fotográfico que o húngaro Pál Rosti compôs no final da década de 1850 com os trabalhos que realizou durante sua viagem a Cuba, Venezuela e México.
Estas e outras obras de viajantes, assim como um bom número de retratos de destacados homens de ciências, viajantes ou não, compõem a iconografia mais diretamente relacionada com o autor da Relation historique d'un Voyage aux Régions équinoxiales du Nouveau Continent. É certo que faltam os nomes de viajantes franceses, como o Conde de Clarac, cuja obra Humboldt elogiou nas páginas do Kosmos, e ainda de outras figuras relacionadas à sua biografia, como por exemplo, os membros da chamada Missão Artística Francesa, que chegou ao Brasil em 1816 e que contou com o seu apoio. Mas, mesmo que não esteja completa, esta listagem registra a atenção que Humboldt dedicou às obras realizadas por artistas-viajantes.
Entre os nomes de artistas europeus seus contemporâneos, cuja obra ou retratos Humboldt guardou consigo até a morte, está o de François Gérard, seu professor em matéria de belas artes, além de colaborador e amigo; também se acham algumas peças do mestre classicista Jean-Auguste-Dominique Ingres, como um auto-retrato gravado por L. Calamatta, que traz a dedicatória "Ingres a ses élèves", e a pintura Lèonard de Vinci rend à Fontainebleu les dernières soupirs entre les bras du Roi François I, dedicada a Humboldt pelo próprio pintor. Da mesma maneira aparecem mencionadas obras do suíço Leopold Robert, pintor que estilizou com impecável linguagem clássica as figuras populares do sul da Itália e reproduções, ou obra gráfica, baseada nos trabalhos de Winterhalter, de Kaulbach e de Cornelius, entre outros.
Entretanto, se buscará em vão qualquer menção a personalidades mais inovadoras do mundo artístico da época: nem o nome de Delacroix, adversário visceral de Ingres, nem o de Turner, repudiado com escândalo pelos acadêmicos por sua ousadia na pintura de paisagem; porém tampouco há referências a Corot, o mestre do estudo a óleo. Nenhum desses artistas figurou na longa lista das obras leiloadas.
Respeitando as ressalvas que é preciso fazer ao estudar este legado, e tendo em conta que as formas de difusão da obra de artistas vanguardistas faziam mais difícil que fossem incorporadas a coleções de amantes das artes, obviamente não devemos atribuir- lhe um valor absoluto para a interpretação do mundo estético de Humboldt. Porém é significativo que as ausências que constatamos aqui sejam as mesmas que estão nas páginas do Kosmos, livro que, em se tratando de questões estéticas, representa a síntese madura do seu pensamento.
Ali, ao tratar da tradição de paisagismo, Humboldt se refere com entusiasmo aos logros que neste gênero oferece o século XVII:
Em virtude de uma consciência mais elevada do sentimento da Natureza, o mesmo século pôde reunir a Claude Lorraine, o pintor dos efeitos de luz e das distâncias vaporosas; a Ruysdael com seus sombrios bosques e suas nuvens ameaçadoras; a Gaspar e Nicolas Poussin, que deram vida às árvores com um caráter tão imponente e garboso; a Everdingen, Hobbema e Cuyp, cujos países parecem à mesma Natureza.3
À vista destes elogios não é estranho, por exemplo, que na venda de Berlim se encontre uma série de 30 folhas que representam paisagens litografadas por Ad. de Heyeck, baseadas em Gaspar Poussin, o discípulo de Nicolas Poussin. Por sua vez, a falta de referências contundentes ao fantástico desenvolvimento que experimenta o paisagismo e os procedimentos para sua realização – para os quais contribuíram teóricos da arte e artistas do final do século XVIII e primeira metade do XIX –, explica-se, em ocasiões, pela história da recepção destes gêneros. Trabalhos como os 'etudes d'apres nature' de Corot, que o próprio pintor jamais considerou como obras de arte para ser mostradas publicamente justifica, em certa medida, que Humboldt não lhes faça menção alguma nem a muitos outros similares, da primeira metade do século XIX.
Por outro lado, surpreende que a valoração que faz de Lorrain, pintor da luz, não se estenda a Turner, artista que se dedicou primordialmente à captação dos efeitos da luz e da cor nas paisagens que criou. Chama igualmente a atenção que a admiração por Ruysdael, pintor de sombrios bosques e nuvens ameaçadoras, não leve Humboldt a mencionar a continuidade que o barroco holandês ganhou nos trabalhos do inglês John Constable, cujos estudos e obra acabada representaram uma ponte entre a tradição e as inovações que viveu o gênero do paisagismo no século XIX.
Em sua proposta estética, sintetizada no Kosmos, Humboldt escreve:
Realizar esboços diante de cenas da Natureza é o único meio de poder pintar - de volta de uma viagem -, o caráter das regiões distantes em vistas acabadas da paisagem; e ainda serão mais felizes os esforços, se os artistas realizarem estudos parciais nos mesmos lugares, inteiramente entregues a suas emoções, seja desenhando seja pintando ao ar livre copas de árvores, frondosas ramas carregadas de frutos e de flores, troncos estendidos sobre o solo e coberto de pothos ou de orquídeas, pedras, uma ribeira escarpada ou parte de algum bosque.4
Entretanto estas formulações ganham mais significado quando se comparam os escritos de Humboldt com os de Pierre-Henri de Valenciennes. Em 1800 Valenciennes havia publicado Éléments de perspective practique à l'usage des artistes, no qual observa:
Não devei deixar de fazer alguns estudos pintados de belas árvores, seja individualmente, seja em grupos. Registrai os detalhes da casca, do musgo, das raízes, dos ramos, da hera que os rodeia e que encontra neles seu apoio; sobretudo escolhei cuidadosamente e estudai a variedade das árvores, de sua casca e da folhagem, a qual é da máxima importância. [...] É certo que estes esboços não representam quadros em si mesmos; porém devem ser guardados em pastas para ser consultados e utilizados cada vez que seja preciso. [...] Um cuidado que os pintores de paisagem não costumam ter, é o colocar no terreno os produtos que são próprios de cada lugar. [...] É através destas combinações que se enriquece uma paisagem, e o olho divaga com prazer por árvores e plantas que vão aparecendo de acordo com os tipos de solo e as qualidades do terreno.5
Vemos, pois, que as propostas que encontramos em Humboldt estão muito próximas às de Valenciennes, e em grande medida, já estavam sendo postas em prática por artistas seus contemporâneos. Isso, contudo, não invalida o seu sentido inovador. Pois, a contribuição dada por Humboldt, deve de ser buscada um passo mais adiante, ou seja, na elaboração da obra acabada.
Fiel discípulo da escola classicista, este pensador prussiano concebe que os esboços devem conduzir à elaboração de uma obra acabada. A primeira conotação desta é, por certo, a de estar concluída como uma pintura, com motivos claramente definidos. Para seu ponto de vista científico-naturalista, a obra deve ter um valor descritivo. Porém não se trata de uma simples definição figurativa; o paisagismo não é concebido como uma mera reprodução do natural. A pintura deve também ser portadora de uma 'idéia'. É através desse componente que a representação da Natureza ganha a aureola de um gênero digno das Belas Artes. Com isto, a sua proposta adquire um grande alcance.
Porém o fato de postular como premissa, tal como fez nas páginas do Kosmos, que o grande salto se dará uma vez que os artistas ultrapassem o âmbito geográfico europeu, reflete a especial valoração que dá ao trabalho de artistas-viajantes. Foi esta definição a que contribuiu decisivamente para resgatar a arte de viajantes da subordinação à que até então esteve submetida.
Para Humboldt, o melhor e mais acabado modelo que pode almejar o pintor de paisagens se encontra no mundo tropical. É ali onde o artista tem de praticar seus estudos acadêmicos. Pois, já com base nos conhecimentos adquiridos nas viagens, é que poderá chegar a uma compenetração profunda com a natureza e, com isso, ultrapassar o simples registro da sua experiência visual, materializada nos croquis e esboços, para ascender a uma formulação na qual, certamente, convergem esses trabalhos preparatórios, contudo já com o fim de compor uma vista que defina o caráter da paisagem.
Essa é a idéia que se aglutina a uma obra concluída. Ela resume uma impressão global e oferece uma representação coerente da fisionomia da natureza. A arte deve, além disso, cumprir uma função didática, com o valor de um estímulo para o estudo do mundo natural. Deste modo, a melhor caracterização de uma região será aquela versão que represente a paisagem em suas possibilidades ótimas, ou seja, aquela que partindo de esboços realizados em viagem, o artista crie no seu retorno.
O sentido idealizador desta proposta é análogo ao que os mestres do Renascimento exigiam para a representação da figura humana; eles recomendavam que ao realizar sua obra, o artista combinasse o melhor que conseguisse reunir a partir dos muitos estudos com modelos para, então, criar o produto final. Leonardo sugeria que o aprendiz selecionasse entre seus apontamentos os melhores estudos do corpo ou de seus detalhes e se exercitasse até memorizá-los. Também Giorgio Vasari insiste em que o artista devia praticar incessantemente frente ao modelo nu, e assim memorizá-los, de modo que posteriormente pudesse reproduzi-los espontaneamente. Entretanto, em seguida, é recorrente que os mestres renascentistas advirtam contra as tentativas de simplesmente inventar uma figura perfeita, ignorando os exemplos do natural. A melhor representação da figura humana resulta, pois, segundo esta escola, de uma síntese dos esboços.6 Este é, em essência, o critério que tanto Humboldt como Valenciennes, assim como a maioria dos mestres classicistas, pretendem por em prática através de seus ensinamentos de pintura de paisagens. E é isto o que Humboldt definiu como uma representação fisionômica da natureza, ao instruir a forma com a qual os artistas-viajantes deveriam construir suas pinturas de paisagem.
Já nos últimos anos de sua vida, Humboldt deu um passo a mais, que é absolutamente paralelo ao desenvolvimento que vinha ocorrendo na prática da arte. Em uma carta escrita em 1853 aconselha ao artista-viajante Albert Berg que seus desenhos,
[...] conservem o caráter de estudos espontâneos com que foram realizados originalmente. Tudo o que se acrescente posteriormente aos esboços que foram elaborados num feliz estado anímico, conduzirá a que estes percam a sua vivacidade. Com isto não quero dizer que a perfeição técnica aplicada a um desenho executado no lugar não contribua a enriquecer o efeito e a fidelidade com que se apreende o caráter de uma paisagem; porém um viajante, em suas rápidas passagens por regiões de difícil acesso, poucas vezes está em condições de poder acabar seu trabalho com tranqüilidade.7
Vemos que o naturalista prussiano procura fazer eco ao desenvolvimento das idéias estéticas que moviam os pintores à época: o que ele chama vivacidade do desenho realizado no feliz estado de ânimo de quem enfrenta a Natureza, é um convite a valoração da experiência visual espontânea do artista. Em sua opinião, nessas circunstâncias o artista concentra sua máxima capacidade criativa. Esta valoração aparece como uma contrapartida às inquietudes que manifestam, por exemplo, os integrantes da École de Barbizon que, saturados da pretensiosa teatralidade da arte oficial, atendem ao impacto que sobre sua sensibilidade provoca o contato imediato com a realidade.
Seria a criação de uma escola de artistas-viajantes?
Como vimos até aqui, o capítulo do Kosmos dedicado ao tema da representação artística da natureza oferece, em verdade, um compêndio cuidadosamente meditado das idéias sobre estética que Humboldt vinha desenvolvendo fazia quatro décadas. Entretanto, é nas obras iniciais, ou seja, em Essai sur la géographie des plantes e "Ideen zu einer Physiognomik der Gewächse", mais ainda na correspondência que manteve com os artistas que impulsionou a viajar à América, que se encontram as primeiras formulações destes pensamentos. Estes escritos nos permitem constatar que, já desde a conclusão da sua viagem americana, no início dos anos de 1800, Humboldt namorava a idéia de contar com uma iconografia naturalista que se conjugasse com sua filosofia da natureza. Mesmo que naquele momento a concepção de uma escola de artistas-viajantes ultrapassasse os limites das aspirações do naturalista prussiano, sim é evidente que já se propunha a marcar um rumo artístico, segundo as suas máximas estéticas.
Sendo um grande erudito, obviamente conhecia a maneira com a qual outros cientistas-viajantes haviam enfrentado o problema de lidar com os ilustradores de suas expedições. O modelo mais clássico era o que havia visto durante seu encontro com José Celestino Mutis, o botânico espanhol radicado em Santa Fé de Bogotá, que dirigia a Expedición Botánica al Reino de Nueva Granada. Apesar do título de "expedição" esse projeto, no sentido estrito, era uma pesquisa localizada, sediada em Bogotá. Desde 1783, Mutis havia começado a estabelecer um ateliê com pintores que trabalhavam na elaboração de figuras botânicas. Com o correr do tempo esta oficina chegou a se constituir como um verdadeiro scriptorium, na qual, nos seus melhores anos, chegou a contar com até dezenove pintores trabalhando simultaneamente e, no curso de três décadas, produziram mais de cinco mil lâminas (conservadas hoje no Arquivo do Real Jardim Botânico de Madrid). Nestas folhas, as plantas aparecem ilustradas com a máxima precisão, segundo os requisitos científicos; porém, além disso, em algumas, a obra dos ilustradores parece empenhada, não apenas em satisfazer as necessidades do estudo naturalista, mas também a aspectos puramente estéticos. São numerosas as representações nas quais os vegetais figuram como miniaturas para livros de coro, apresentando complexas modalidades de distribuição nas folhas de desenho ou, inclusive, compondo letras iniciais.
O projeto de Mutis logo cedo se confrontou com o problema mais freqüente vivido por expedições naturalistas, com respeito aos seus ilustradores: a questão da categoria e autonomia do artista. Um caso paradigmático é o que ocorre com o pintor Pablo Caballero, natural de Cartagena de Índias, considerado um dos mais destacados pintores neo-granadinos. O nome de Caballero constou da lista de artistas do ateliê apenas por dois meses, no ano de 1785. O fato é que não resistiu nem a disciplina do trabalho nem os ditames impostos por Mutis. Segundo consta, o chefe da "expedição" exigia total subordinação, o que ofendia, ao entender de Caballero, a sua dignidade de artista.
Mutis havia concebido a "Expedição Botânica" como um projeto a ser realizado em longo prazo e, ciente do problema com os artistas, não apenas criou um ateliê de ilustradores para satisfazer as necessidades imediatas, mas também fundou uma escola de desenhistas, cuja direção confiou a Salvador Rizo, pintor natural de Cartagena de Índias que, além de sua função artística, desempenhava um papel que pode ser entendido como um administrador da "expedição". O ateliê e a escola funcionavam com uma estrutura de grêmio, com oficiais e aprendizes, e se transformaram em uma grande academia de ciências naturais, que se manteve ativa até a morte de Mutis em 1808.8
O problema que propunha a Expedición Botánica al Reino de Nueva Granada era, em certa medida, singular, uma vez que se tratava de um projeto que se realizava com uma sede fixa. Foi aproveitando essa circunstância que Mutis pôde criar seu ateliê e escola. Contudo, esta mesma questão sobre a categoria e autonomia dos artistas esteve presente nas viagens de circunavegação, quando a solução não era tão fácil de ser encontrada.
Contudo, que dúvida cabe que Humboldt também estava perfeitamente familiarizado com os conflitos próprios das expedições itinerantes? Certamente se mantinha a par não só por sua experiência pessoal, como pelo conhecimento detalhado da vida cotidiana de algumas das mais complexas expedições americanas de sua época, nos referimos à expedição capitaneada por Alessandro Malaspina. Esta, sem dúvida, foi a mais ambiciosa empresa naturalista que a Espanha ilustrada enviara a seus territórios coloniais (de 1789 a 1794), mas também se tornou o exemplo para qualquer outro projeto deste tipo, em vista dos seus grandes percalços.
Não se trata aqui de estudar o descaso com que a coroa espanhola ignorou os resultados e as conquistas desta grande empresa, nem tampouco a mesquinhez com que Malaspina foi perseguido. Interessa, uma vez mais, não perder de vista os conflitos que ocorreram com os ilustradores e as relações com a produção do registro visual.
Uma vez aprovado o projeto da viagem por parte da corte, Malaspina se dedica a buscar os pintores hábeis "que representem ao vivo aqueles objetos, que nem as penas mais destras puderam descrever cabalmente" e que – além disso – possuam gênio dócil 9 e aplicado. A escolha recaiu no sevilhano José del Pozo, que ao ser contratado foi descrito como de excelente sujeito para pintor de perspectiva, de muito boa educação, algum conhecimento de geometria e uma grande robustez sobre uma idade de 32 anos10, e no madrileno José Guio, para os desenhos de botânica e zoologia.
Apesar das qualidades que se atribuem originalmente a Pozo, no curso da viagem suas relações com Malaspina se deterioraram, a ponto de ser acusado de falta de espírito de trabalho – ou seja, de preguiçoso – e indisciplina. No Perú, finalmente, Pozo abandona a expedição. Diante desta deserção ficou em evidência que o caráter especializado do trabalho de Guio, dedicado unicamente a plantas e animais, tinha sérias desvantagens e o chefe da expedição optou por substituí-lo. Mas passaria mais de um ano até que se conseguisse artistas acordes com as pretensões de Malaspina. Isso significa que durante este tempo não se fez a devida documentação visual dos lugares visitados, nem da fauna nem da flora, trazendo graves prejuízos à expedição. Como solução de emergência contou- se com o trabalho de José Cardero, um marinheiro que demonstrou habilidades como ilustrador, e com a contratação temporal de Tomás de Suria, um artista espanhol que havia se estabelecido na Cidade do México. É justamente quando a expedição Malaspina está nesta cidade que vê chegar os italianos Juan Ravenet e Fernando Brambila, que são incorporados como artistas, em substituição a Pozo e Guio.
Humboldt teve conhecimento direto do ocorrido com a expedição Malaspina, ainda em Madrid, antes de viajar à América. Além disso, ao estabelecer relações pessoais com Felipe Bauzá, que havia feito parte daquela circunavegação como encarregado de pintura e cartografia, teve a possibilidade de se informar em detalhe desses aspectos primordiais dos conflitos cotidianos vividos durante a viagem.
Um terceiro caso que sensibilizaria especialmente ao viajante alemão neste assunto, foi o de Johann Moritz Rugendas, o mais prolífero dos artistas que Humboldt protegeu. Rugendas havia passado quase quatro anos no Brasil (de 1822 a 1825), como ilustrador da expedição capitaneada por Georg Heinrich von Langsdorff. As relações entre o artista e seu chefe não puderam ser piores e pouco faltou para que chegassem aos tapas. O contrato com o qual Rugendas se incorporou ao projeto Langsdorff continha cláusulas draconianas. Nele se exigia do artista, entre outros deveres, um exercício serviçal de sua arte em todas as circunstâncias que o chefe solicitasse, assim como a disposição para ilustrar tudo o que fosse requerido. Ademais Rugendas também devia entregar todo o material produzido no curso da viagem; se escrevesse um diário, Langsdorff teria o direito de consultá-lo e utilizá-lo da forma que melhor lhe parecesse.11
Porém, Rugendas nunca conseguiu submeter-se realmente às condições de trabalho que o seu contrato lhe impunha. Mesmo que a relação entre o artista e o naturalista tenha se rompido por desavenças aparentemente circunstanciais, as causas de fundo devem ser buscadas na extremada subordinação e na falta de um espaço próprio que o artista reclamava para si. Finalmente, tal como Pozo, optou por abandonar a expedição e retornar a Europa.
É sintomático, neste sentido, que Langsdorff volte a enfrentar o mesmo tipo de problemas pouco tempo depois, desta feita com Aimé-Adrien Taunay, artista que substituiu a Rugendas na função de ilustrador desta expedição. Cabe lembrar que tanto Rugendas como Taunay pertenciam a prestigiosas famílias de artistas. Um e outro tinham sido educados na consciência de que seu ofício não era um simples afazer artesanal, mas sim um trabalho criativo, no qual a individualidade jogava um papel essencial. O simples registro de motivos indicados por outrem estava muito abaixo das pretensões destes dois criativos jovens.
Neste ponto é que o pensamento estético de Humboldt chega em auxilio aos artistas-viajantes. Os seus postulados, mesmo que embasados em preceitos conservadores, deixam evidente que o papel de desenhista e pintor numa viagem é muito mais relevante que o de um simples documentador. Humboldt reconhece a categoria e a autoria que estes artistas necessitam. Para ele, a valoração da obra dos artistas viajantes é muito superior que a de um objetivo registro documental. Os materiais de trabalho, sejam estudos de flora, fauna ou croquis da topografia, são elementos parciais. Mas, uma vez que estes sejam submetidos à 'idéia' artística, podem se transformar em uma magnífica criação artística no gênero da pintura de paisagem.
Tanto maiores são estas expectativas, quando se recorda que, da perspectiva de Humboldt, é precisamente a natureza tropical a que conduzirá ao grande florescimento do paisagismo. Mas, essa premissa se encontra em flagrante contradição com o rumo que, mais e mais, ia predominando nas vanguardas artísticas do século XIX. Não seria a escolha de um determinado motivo o que dava validez à obra artística. Ao contrário, todo motivo passa a ser válido. Ao persistir nas categorias precedentes, Humboldt segue sujeito à tradição clássica. Porém, a partir daí se desenvolverá uma corrente que dará um importante impulso à relação entre a arte e as ciências.
Humboldt e os artistas viajantes: algumas aproximações
Ante o enorme prestigio que Humboldt havia conquistado no universo intelectual europeu, à época, o reconhecimento que deu ao trabalho realizado por viajantes, valorando suas obras, representou um marco para todo desenhista ou pintor que se aventurasse a participar na representação das terras no ultramar. E os impulsos que deu frutificaram pelas mais distintas vias.
Em 1815, por exemplo, Humboldt foi consultado em Paris sobre a intenção da coroa portuguesa em criar uma academia de arte no Brasil. O Rio de Janeiro havia passado a ser a capital da monarquia lusitana depois que as tropas de Napoleão haviam obrigado a Família Real a transmigrar para sua colônia. Uma vez no Brasil, buscava-se maneiras para aparelhar a cidade de forma a sediar dignamente a Corte. Como parte deste projeto, o governo português comissiona ao Marques de Marialva, seu embaixador junto a Luis XVIII, para que contratasse artistas que se dispusessem a realizar um projeto acadêmico na América do Sul. Marialva, por sua vez, solicitou o conselho de Humboldt. Foi este viajante quem sugeriu o nome de Jacques Lebreton como diretor da Colônia de Artistas, que depois a historiografia brasileira consagrou como Missão Artística Francesa. Embora este caso seja emblemático para a história da arte brasileira, pois marcou de maneira indelével a produção local, a influência de Humboldt na construção de imagens americanas por artistas-viajantes são bem mais amplas.
Sua influência pessoal e mais direta se deu em uma série de artistas alemães que se deslocaram à América do Sul e foram os responsáveis pelos principais conjuntos de imagens de muitos dos nossos paises. Este é, por certo, o aspecto mais estudado deste capítulo da historia da arte de viajantes.12
A personalidade mais fiel ao ideário estético humboldtiano foi a do bávaro Johann Moritz Rugendas.13 A relação entre ambos teve início em Paris no final do ano de 1825. Rugendas, como se viu acima, acabava de retornar do Brasil, depois de sua malograda experiência como ilustrador da expedição Langsdorff. Ao revisar as pastas de desenhos do jovem artista viajante, Humboldt descobriu um trabalho muito próximo do seu postulado, no que se refere à representação fisionômica da natureza tropical. Em vista disto, abre as portas do mundo cultural e artístico parisiense a Rugendas, lhe indicando o caminho para publicar sua obra brasileira.14 Mas não apenas isto; apoiará e guiará o jovem artista animando-o a retornar à América.
Seguindo estes conselhos, já no início de 1830, Rugendas escreve a Humboldt, contado-lhe seu projeto de viajar sozinho às terras de além mar, e este lhe responde entusiasmado: Alegro-me de sua decisão de ir a América e penso que, graças ao registro vivo dos tipos da vegetação que o Senhor realizará, se iniciará uma nova época na pintura de paisagem. E, imediatamente, lhe faz uma série de sugestões sobre a rota que deve seguir, aconselhando-o que busque paisagens nas quais abundem os contrastes gerados por abruptas diferenças de alturas. Conclui resumindo sua idéia com um elegante elogio: Um grande artista, como o Senhor, deve buscar o grande.15
Anos mais tarde, Humboldt também apoiaria com êxito o projeto do pintor Ferdinand Bellermann que solicitava recursos ao rei de Prússia para viajar ao ultramar; seu destino era Venezuela, para onde efetivamente seguiu e, entre 1842 e 1846, visitou os lugares mais destacados que sugeriu seu mentor.
Eduard Hildebrandt foi outro artista que consegue acesso à coroa de Prússia por intermediação do naturalista e até recebe encomendas de pinturas, com vistas a ajudá- lo economicamente na realização de uma viagem ao Brasil, entre 1844 e 1845.
Albert Berg, por último, viaja a Colômbia entre 1849 e 1850, graças ao apoio que recebeu de Humboldt. E, no seu retorno à Alemanha publica, em 1854, seu álbum Physiognomie der Tropischen Vegetation Südamerika's, cuja apresentação foi escrita por aquele ilustre viajante.
Estes artistas são exemplos mais contundentes do papel desempenhado por Humboldt como forma de ver seus pressupostos teóricos sendo posto em prática. Ao deslocarem-se às distantes regiões estabelecem uma relação intelectual mais imediata e manifesta com o viajante prussiano e realizam com seus lápis e pinceis o que Humboldt havia apregoado nas suas publicações, com respeito ao que definiu como "fisionomia da natureza". Será a tarefa que deverá empreender um grande artista havia escrito Humboldt convocando aos artistas já em 1806,
[...] ao estudar o caráter de todos estes grupos de plantas, não se faça em estufas, mas sim na própria majestosidade da natureza tropical. Quão interessante e instrutiva seria uma obra que pusesse à disposição de todos, as dezesseis formas fundamentais das plantas, primeiro de forma individual, depois contrastando umas com outras?16
Ao revisar a obra que estes pintores realizaram em suas viagens pela América do Sul, nos convencemos que eles assumiram os escritos de Humboldt como uma cartilha. Já nos estudos particulares das plantas se percebe a intenção de situá-las em seu contexto natural. As composições globais do interior da selva tropical se transformam assim em uma espécie de 'incubadora artística' ideal, na qual os pintores distribuem a rica coleta que esboçaram nas suas cadernetas de viagem durante as andanças em terras distantes das suas.
Estas personalidades paradigmáticas nos mostram a nova função que ganhou o artista viajante. O papel que desempenharam é obviamente mais rico que o dos ilustradores das expedições do Século das Luzes. Mas também na valoração acadêmica ascenderam a um patamar muito superior ao do simples pintor domingueiro que busca o pitoresco e registra suas impressões de viagem.
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Hercule Florence percorreu mais de 13 mil km pelos Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará, documentando em textos e desenhos suas impressões sobre a paisagem, os índios, a fauna e a flora
O barão Georg Heinrich Von Langsdorff chegou ao Rio de Janeiro em 1813, depois de ter sido nomeado cônsul geral da Rússia no Brasil pelo Czar Alexandre I. Era naturalista e cientista-viajante, formado em Medicina pela Universidade de Göttingen.
Aimé-Adrien Taunay e sua jornada interrompida: uma das trágicas passagens da Expedição de Langsdorff foi descoberta por Hercule Florence em fevereiro de 1828.