Se a ausência de Luz deixa tudo escondido, muita Luz preenche o vazio até cegar a vista. Foi esse o pensamento que me acompanhou durante o contato que tive com as correspondências e memorandos de Hercule Florence
(...) Quisera Deus
pudéssemos imprimir à luz,
obtendo exemplares coloridos!
Hercule Florence
Por Mariana Suter*
Lembra de quando você era criança e recebeu a orientação de nunca olhar para o Sol diretamente? Há uma razão para isso: luz demais arde, queima. Assim como o calor do Astro Rei marca nossa pele, seu brilho fere as nossas retinas.
Se a ausência de Luz deixa tudo escondido, muita Luz preenche o vazio até cegar a vista. Foi esse o pensamento que me acompanhou durante o contato que tive com as correspondências e memorandos de Hercule Florence – seu brilho era tão intenso que os que estavam ao seu redor preferiram fechar os olhos. Não eram só as invenções, as ideias à frente do seu tempo: o brilho vinha da completude.
O homem é um ser múltiplo e a Vida nos pede constantemente que exploremos as nossas variadas facetas, mas para isso é preciso coragem, pois a liberdade oferecida por essa completude vem invariavelmente de mãos dadas com a responsabilidade. Quem segura o peso de ser pai de uma família numerosa, agricultor, pintor e desenhista, bom amigo, mestre impressor, cidadão consciente? Junto de tudo isso ainda vale colocar na balança os questionamentos existencialistas de alguém que se percebe parte de um grandioso Todo.
Quando refletia sobre este texto e buscava uma alegoria para falar desse francês/monegasco que adotou o Brasil como lar, pensei nos trabalhos de Hércules, nos signos do Zodíaco, nas aventuras de Ulisses, pois só essas imagens explicam as sensações que experimentei ao traduzir a genialidade humilde de um inventor que viu seu trabalho sistematicamente ignorado: o que hoje chamamos de jornada ou propósito parecia um conceito muito claro para Hercule.
Mais do que o reconhecimento das suas invenções – que ele pouco, mas merecidamente buscava – o que o movia era a percepção de que suas ideias poderiam contribuir para o aprimoramento da sociedade e da época em que ele estava inserido: me encantou perceber que o empenho em aperfeiçoar as técnicas de impressão vinha da sua vontade de que todos tivessem voz; que a pulvografia tinha como motivação a democratização do acesso às artes; que a permanência no Brasil apesar dos muitos impedimentos que essa escolha implicasse era um ato de amor pelos seus, mas também vinha da percepção de que ali era o lugar ideal para servir de berço às artes que brincam com a bola de fogo mantenedora da vida no nosso planeta.
Ele era generoso tal qual a abundância que via muito claramente na Natureza; resiliente a ponto de continuar investindo tempo e atenção nas ideias que aos seus contemporâneos pareciam incomuns. Obstinado o suficiente para saber que seu caminho estava traçado, embora se perguntasse o porquê de cada pedra que aparecia como obstáculo; tenaz como a criança que olha tudo pelo prisma da encantada novidade. Humilde para questionar a própria importância; consciente da parte que lhe cabia na intrincada engrenagem da qual todo ser humano faz parte.
As cartas e ensaios a que tive acesso, a atual missão do Instituto, o empenho dos seus descendentes, tudo isso me desenhou um verdadeiro Monomito:
O ser humano raramente está pronto para acolher pontos de vista que abalem suas certezas, porque mudar dá medo – e qualquer visionário que tente abrir os olhos de quem ainda dorme enquanto o Sol já raiou, é encarado com o mesmo sentimento. O medo gera diferentes reações: raiva, deboche, desprezo... mas o mais comum é a indiferença, como se ignorar algo apagasse a sua Existência. Estamos falando do final do século XIX - e se ser assim hoje em dia já não é fácil, imagine naquela época.
Me identifiquei e me compadeci com os seus momentos de dúvida; me emocionei com a visão ampliada da sua espiritualidade serena; me inspirei com a discreta participação política. E eu me sinto honrada de hoje poder contribuir, mesmo que em pequena medida, para que a divulgação da sua história ganhe mais amplitude. A Luz dos seus experimentos que me acompanhou nas manhãs de tradução, deixa o recado: mesmo que atrás de nuvens, o Sol nasce todos os dias.
* Mariana Suter entrou em contato com vida e obra de Hercule Florence ao traduzir do francês para o português um caderno intitulado “Correspondance et Pièces scientifiques”. Transcrito pelo historiador Thierry Thomas, o caderno redigido de próprio punho contém 27 cartas e ensaios sobre suas invenções e faz parte da Coleção Arnaldo Machado Florence, doada ao IHF por sua filha Teresa Cristina Florence Goedhart.
Suter é multiplicadora. Profissional das Letras e da Linguagem: entende que a convergência de ideias e a resolução de embates acontece quando estamos dispostos a ouvir antes de falar. Poeta com sede de gente e fome de mundo.
Para conhecer o trabalho da autora acesse:
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