A vida de Hercule Florence no contexto migratório do século XIX
Para a historiadora italiana Chiara Vangelista (professora aposentada da Universitá degli Studi de Gênova), o livro Cartografia Migrante pretende “indagar o espaço social de Hercule Florence”, contextualizando os episódios de sua vida e obra a partir da fase inicial do processo migratório ocorrido no século XIX, do qual o artista é, segundo a autora, “uma figura exemplar, quase uma síntese”.
Participante ativo desse processo, Hercule refletiu sobre três movimentos fundamentais do período, vivenciados diretamente por ele: os ideais liberais da Revolução Francesa; a segunda Revolução Industrial; e o projeto colonial/imperial de enriquecimento por meio da exportação mundial de commodities, especificamente o café, com a utilização de mão de obra escravizada.
A historiadora, que dedicou sete anos de pesquisa para escrever esta obra, afirma que três campos de seus estudos confluem na biografia de Hercule: as migrações no Brasil, as políticas tribais entre os séculos XVIII e XIX na área central da América do Sul, e as investigações sobre a representação visual do Brasil urbano e rural durante o reinado de D. Pedro I.
Chiara adentra nas qualidades de Florence como explorador, desenhista, pintor, memorialista, cartógrafo, professor, fazendeiro, chefe de família e inventor, analisando seus textos biográficos através do método histórico, enquadrando a perspectiva individual e a construção de sua imagem em processos historicamente definidos.
Traduzida do italiano e publicada em português pelo IHF, a edição lança uma nova luz sobre esse fascinante personagem e a época em que ele viveu.
Leia trechos:
Capítulo 2
No mundo de Florence, as migrações de curta ou média distância constituíam o percurso normal de trabalho e de vida das classes populares, mas também da pequena e média burguesia e da baixa aristocracia. Todavia, Florence tinha um problema, o de ser duplamente “deslocado”: psicologicamente, pois ansiava pelos grandes espaços e pelas aventuras por terras inexploradas, e socialmente, pois não dispunha dos instrumentos necessários para enfrentar a experiência migratória. De uma família pequeno-burguesa, Florence não podia conceber imiscuir-se nos fluxos migratórios de muitos adolescentes do seu país, que atravessavam fronteiras para trabalhar em França, ganhando assim o seu sustento e, se a vida lhes corresse bem, contribuindo também para o da família, que de todo o modo se via aliviada por um certo período de robustos apetites difíceis de placar.
Capítulo 3
Já no final dos anos dez, o Rio de Janeiro era uma cidade em expansão demográfica. O comércio de retalho animava as ruas; os comerciantes de escravos importavam em fluxo constante a sua mercadoria humana enquanto os ciganos a vendiam a retalho na Rua Val-Longo. Os escravos dominavam o pequeno comércio ambulante; a imigração europeia era bem aceite, embora sofresse a forte concorrência da mão de obra escrava, mais experiente nas técnicas e nos materiais locais.
Nos anos vinte, a vida no Rio de Janeiro era caríssima, sobretudo para os europeus, que se adaptavam mal aos produtos locais. A cidade estendia-se por um vasto território, que as ruas desprovidas de calçada tornavam intransitável, sendo as deslocações de carruagem muito custosas. Era sobretudo caro o alojamento, e em geral as casas eram mal construídas.
Capítulo 4
Florence também teve uma breve experiência de imprensa política durante a revolta liberal de 1842, graças ao prelo que comprara no Rio de Janeiro em 1836, com a ajuda do sogro. Em 1838, Florence obteve a licença de tipógrafo do município de São Carlos, tornando-se o primeiro impressor da cidade. Com a eclosão da revolta liberal como protesto contra a dissolução das câmaras por parte dos conservadores e contra o derrube do governo dos liberais, Florence aderiu à ala mais radical do movimento, ao contrário do sogro, que manteve uma posição moderada, ou seja, uma oposição não armada.
Florence teve um papel ativo nesse episódio, pondo a sua máquina tipográfica ao serviço da causa: transportou-a até à cidade de Sorocaba – que atualmente, graças às estradas do século XXI, dista cerca de 90 quilómetros de Campinas – e imprimiu aí o jornal da revolta, O Paulista, dirigido e escrito pelo padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), que se contara entre os fundadores do Partido Liberal (1831-1889) e foi elemento do grupo da Regência por um breve período, durante a menoridade de Dom Pedro II, o futuro segundo imperador do Brasil.
O Paulista viveu o espaço de quatro números, entre maio e junho de 1842. O quinto número, já pronto, não pôde sair, uma vez que Sorocaba, a sede dos insurretos, foi conquistada pelos conservadores. Florence teve de fugir e salvou a tipografia enterrando-a no caminho de volta. Foi a sua primeira e única participação na política ativa.
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O atlas [das nuvens] foi concebido por Florence com base em dois parâmetros diferentes de utilidade, pessoal e coletiva: a oportunidade de propor um trabalho orgânico para vender – uma espécie de salto qualitativo em relação aos retratos de notáveis locais e às vistas das suas fazendas – e uma obra útil para outros artistas. Existe, no entanto, um outro aspeto que torna este atlas também e quiçá sobretudo um produto da emigração, um elemento fundamental na construção de uma cartografia migrante específica e pessoal.
Florence, como todos os migrantes, olhava para o céu e sentia-se em comunhão com a sua terra de origem, do outro lado do oceano. Nalgumas páginas dos seus manuscritos, teoriza os meios necessários para transformar os aeróstatos em verdadeiros veículos transoceânicos e reduzir assim as distâncias entre a América e a Europa, tal como os navios a vapor e as ferrovias tinham feito na superfície terrestre.
Capítulo 5
Hercule Florence construiu o seu espaço social através de ações, e estratégias até, partilhadas com a sua geração de migrantes, a anterior à grande imigração do fim do século XIX; estratégias que incorporaram os laços matrimoniais, inicialmente com Angélica, depois com Carolina, e as afinidades ideais e políticas, que se concretizavam na socialidade culta e militante dos jornais, nos círculos citadinos de inspiração maçónica, e na formação dos jovens no seio de uma escola laica, como a que seria fundada pela mulher Carolina.
Em tal contexto, o mundo de Florence construiu-se no interior de três conjuntos, formados em sucessão, embora interagindo muitas vezes entre si. O primeiro é constituído pelas relações que o levaram ao Brasil e que lhe permitiram sobreviver no Rio de Janeiro: um ambiente caracterizado por ligações ainda recentes ao bonapartismo e às revoltas liberais subsequentes ao Congresso de Viena, e que se estendeu do Rio de Janeiro à cidade de São Paulo, na qual Hercule viveu durante o primeiro ano de casamento.
O segundo conjunto de relações forma-se por via do primeiro casamento, com Angélica, a filha de Álvares Machado, conhecido graças ao recrutamento do barão Von Langsdorff. Após a tentativa falhada de ter uma vida independente em São Paulo com a jovem mulher, a partir do nascimento do seu primeiro filho, Amador, Florence fixou-se definitivamente em São Carlos/Campinas, usufruindo, sobretudo nos primeiros anos, do prestígio do sogro e da rede política de matriz liberal de que Álvares Machado era o representante local.
O terceiro conjunto de relações, o mais notável, foi construído a partir do segundo casamento, celebrado em 1854 com a professora alemã Carolina Krug, a qual, graças à boda e ao dinheiro do irmão, fundou em Campinas uma célebre escola para jovens abastadas.
Capítulo 6
É, no entanto, dez páginas antes, num fragmento intitulado Art d’inventer, que se encerra o significado de ser inventor para Florence. Eis um trecho, talvez o mais significativo:
O homem está em toda a plenitude da sua natureza de origem divina quando inventa, quando cria.
Inventar é melhorar.
A verdadeira condição do homem é a perfetibilidade moral e material.
Cecilia Prada comenta Cartografia Migrante, novo livro sobre o artista-viajante de autoria da pesquisadora italiana Chiara Vangelista