Evento foi finalizado com conversas de pesquisadores sobre questões da imagem na contemporaneidade
A tarde do dia 24 de maio do Seminário Internacional 190 Anos dos Experimentos Fotográficos De Hercule Florence contou com duas mesas voltadas para a reflexão sobre a imagem, em termos atuais e de futuro.
Antonio Fatorelli, criador do grupo de pesquisa “Fotografia, Imagem e Pensamento” na Escola de Comunicação da UFRJ, trouxe uma reflexão fundamentada na relação entre fotografia e temporalidade. A noção culturalmente dominante de imagem fotográfica, a fotografia direta ou o snapshot, sugere um grau zero do tempo que, segundo o investigador, não existe. Na verdade, a fotografia tem uma relação problemática e intrínseca com a duração, e existem uma variedade de imagens, no plano artístico, que evidenciam isso, como as colagens, a seriação de negativos, os tremidos, as sobreposições – formas híbridas que a modernidade rejeitou “em completa dissonância com os processos de constituição da imagem”.
Os modernos pensaram o singular e o irredutível, tenderam para a definição e tiveram dificuldade em integrar formatos mais ambíguos e complexos. Para Fatorelli, é mais interessante pensar a fotografia a partir dessas formas impuras e o digital traz uma oportunidade para reconsiderar a História da Fotografia. O pesquisador lançou a pergunta “O que há de fotografia no cinema? E o que há de cinema na fotografia?” – a proposta é refletir sobre a imobilidade da imagem em movimento e a mobilidade da imagem supostamente fixa. Estas questões surgiram sobretudo a partir dos anos 1990, afirmou, em que a inscrição plástica do tempo começou a ser considerada teoricamente e as heterogeneidades de formatos se tornaram objeto de reflexão.
Fatorelli referiu a importância do trabalho artístico para perscrutar dimensões do mundo material que não são evidentes, partindo da conceção de Henri Bergson, que considerava a perceção humana como uma superfície de contato entre a consciência e o mundo material. O pesquisador sublinhou a importância das práticas experimentais que, decorrendo no tempo, buscam trazer essas outras relações do mundo material, invisíveis e complexas, não exploradas pelos modernos, e que encontram produtividade no erro e no acaso, enquanto partes do trabalho processual. Nesse sentido, Fatorelli relembrou a atualidade de Hercule Florence: “o que os pioneiros nos endereçaram e hoje podemos perceber?” É importante revisitar os pioneiros a partir da nossa experiência contemporânea, enfatizou. Hercule Florence é um exemplo das relações múltiplas e irredutíveis entre fotografia e tempo que interessam pensar a este teórico da imagem: a pesquisa, a produção, a fixação e também a relação entre diversas formas inventivas, como o desenho, a fonografia, os desenhos fotogénicos.
A segunda e última mesa da tarde juntou duas palestrantes, seguido de uma conversa com o público, moderada por Millard Schisler (IMS), sob o tema comum “Futuras imagens, Futuros da imagem”.
Ingrid Hoelzl fez a sua apresentação a partir de dois livros, de que é co-autora com Remie Marie: SoftImage, sobre o status da imagem no ambiente digital, e Commom Image, que reconsidera a imagem como algo comum entre-espécies.
A pesquisadora independente de Teoria da Imagem começou por abordar o paradigma fotográfico da imagem que, segundo defendeu, não começou com a fotografia, mas quatro séculos antes com a invenção da perspectiva linear, na Itália renascentista, enquanto demonstração perfeita da convergência entre visão e representação. Esta convergência constitui um programa da modernidade de ordenação racional do mundo ou “parafraseando o slogan feminista, o visual é político” (no original, “o pessoal é político). A imagem como programa levou à consideração da evolução digital da tridimensionalidade convertida em bidimensionalidade, de que são exemplo as imagens do Google Maps ou do Google Earth, em que o algoritmo, o perfil do usuário, os bancos de dados contribuem para um mundo representacional. Cálculo, moldagem, planejamento – os poderes mágicos do mundo da imagem – que podem produzir também um vazio de representação, através de uma forma de visão programável, de imagens sempre em atualização, onde se perde e desloca muita informação. “As funções das imagens mudaram, já não são uma representação do mundo, mas fazem parte de uma operação”, defendeu. Hoelzl abordou também o tópico da visibilidade e invisibilidade, a partir do modelo arquitetônico de Jeremy Bentham (século XVIII), o panóptico, que permitia aos guardas observarem os detidos de uma torre central sem que aqueles pudessem saber se estavam ou não a ser vigiados (problemática abordada na célebre obra de Michel Foucault Vigiar e Punir). No digital, argumentou, o controle está baseado na invisibilidade. Sobre estas problemáticas, Ingrid Hoelzl foi convocando, ao longo da sua exposição, artistas contemporâneos que ironizam ou questionam estas novas realidades.
A estudiosa terminou com a questão da imagem futura, propondo possibilidades de pensar estes fenômenos distópicos, convocando a teoria pós-humana: a pós-imagem como uma visão colaborativa transversal, o fim da imagem e do humano, e a imagem como uma eco-relação. O debate, que existe desde a Idade Média, entre iconoclastia e idolatria da imagem permanece atual, defendeu. “A imagem criada revelou o seu poder de destruição do mundo e de nós mesmo. A imagem, pode-se dizer, está morta. Ela perdeu a sua função e nós perdemos a fé nela. Mas, assim como o dinheiro, ela continua se proliferando e continua nos enganando”. Para o futuro, propõe o conceito de imagem comum, imagem num sentido amplo – química, eletrônica, sônica, etc. –, uma imagem que não é uma representação do mundo, mas uma relação entre o vivo e o não vivo, o ancestral e o atual, uma mediação estética entre visível e invisível que pondere as entidades/tempos/culturas que uma imagem pode incluir ou excluir.
Imagem e exclusão – e propostas transformadoras através da tecnologia – foi o tema de Silvana Bahia. A pesquisadora e ativista, com foco nas mulheres negras brasileiras, começou a sua fala expondo o que encontrou em comum entre si e Hercule Florence: curiosidade, experimentação e gosto pela tecnologia. A sua preocupação é “por um futuro onde caibam todas as pessoas”, privilegiando as “lentes” da raça e do gênero, num Brasil onde grande parte da população é negra, mas não está totalmente visível.
Na sua perspectiva, existem dois caminhos para discutir a imagem: a questão técnica (Quem sabe? Quem aprende? Quem acede?); e a subjetividade (que inclui o potencial de narrativa e memória). A partir destas linhas, apresentou quatro imagens, “que contam a história do Brasil”, indo do século XIX ao ano de 2023. Entre elas, a conectá-las, o problema do racismo estrutural e de formas de exclusão que muito se relacionam com o poder de produzir as representações, espelho de uma realidade desigual. A primeira imagem, de uma negra escravizada, carregando uma criança branca nas costas, de 1870 (acervo IMS) fala de um passado aparentemente distante. Mas a foto do carnaval da Bahia, de 2014, em que quase só brancos estão visíveis no corredor central, e negros nas laterais, fora das cordas, fala de uma sociedade onde já não existem proibições de acesso étnico, mas a exclusão se mantém. Ou ainda é o mesmo caso, o da imagem do aniversário de Donata Meirelles, diretora da Vogue, recriado o tema colonial de forma lúdica. Ou a fotografia mundialmente divulgada da expulsão do jogador Vinicius Junior, vítima de racismo em pleno campo de futebol. Para Silvana Bahia, a relação entre o social e o técnico é transversal às épocas e é nesse futuro que o seu trabalho procura intervir.
“A tecnologia é feita por humanos”, sublinhou, convocando o trabalho de Satiyal Umoja Noble, em Algoritmos da Opressão. As desigualdades estruturais, que nasceram num mundo offline, prolongam-se no digital, através de padrões e dados que continuam a reproduzir as assimetrias, defendeu. E por isso em 2016 Silvana Bahia iniciou um projeto de mapeamento de mulheres negras envolvidas na produção de tecnologia, em diferentes níveis, criando uma plataforma que as conecta, procurando contribuir para a diversidade da produção e criação tecnológica, de forma a alterar uma realidade secular, no plano contemporâneo. A partir desse projeto, nasceu também o Preta Lab. “É difícil imaginar ocupar espaços onde não vemos ninguém parecido com a gente”, defendeu. Por isso o Preta Lab trabalha com inovação, tecnologia e formação, oferecendo cursos para pessoas não-binárias, da periferia, mulheres, negras, que de alguma forma na sua vida profissional usam tecnologias e podem, no presente e no futuro, usá-las como mecanismos de transformação social, ao intervir no seu desenvolvimento. A ativista concluiu dizendo que prefere mudar paradigmas culturais a usar o termo “inclusão”, uma noção em si contaminada pelas desigualdades estruturais. Silvana Bahia declarou ainda o seu otimismo quanto a novas formas tecnológicas como a Inteligência Artificial, “desde que usadas por outros corpos e outras mentes”.
Seguiu-se um animado debate entre palestrantes, moderador e público, em torno do futuro da imagem, as questões sociais, o contributo do pensamento do pioneiro Hercule Florence, as participações de todos os oradores. A tarde terminou com os agradecimentos dos organizadores às equipas e aos parceiros, e aos investigadores que partilharam o seu saber, no final de um seminário que abriu novos caminhos àqueles que nele participaram.
Manhã do primeiro dia do Seminário Internacional Cento e Noventa Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence traz análises científicas realizadas em fotografias do século XIX
Tarde do primeiro dia do evento reuniu especialistas que estiveram em Évora, Portugal, para a realização das análises físico-químicas dos objetos fotográficos de Hercule Florence