Manhã do primeiro dia do Seminário Internacional Cento e Noventa Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence traz análises científicas realizadas em fotografias do século XIX
Começou dia 23 de maio de 2023 o Seminário Internacional Cento e Noventa Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence, no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, onde foram divulgados os resultados das análises realizadas em três objetos fotográficos de Hercule Florence, num encontro que também reuniu acadêmicos e artistas em torno da importância da figura do artista-inventor.
Na apresentação do evento, João Fernandes, diretor artístico do IMS, deu as boas-vindas a todos os participantes e ao público, destacando a cooperação entre várias entidades para este encontro e o conhecimento da figura inventiva de Hercule Florence: o IMS, o Instituto Hercule Florence (Brasil), o Getty Conservation Institute (EUA), o Laboratório HERCULES/Universidade de Évora (Portugal) e a Universidade de São Paulo (Brasil).
Francis Melvin Lee (IHF), lembrou o objetivo da instituição em fomentar a pesquisa sobre a cultura do século XIX no Brasil, desenvolvendo e disponibilizando conhecimento sobre Hercule Florence, e outras personalidades e espólios da época. A superintendente do IHF sublinhou, no percurso de Hercule Florence, a experiência na Expedição Langsdorff, pouco depois de ter chegado ao Brasil em 1824, o que despertou a sua necessidade de encontrar novos e mais fáceis meios de registro da realidade do que o desenho, estando na origem do seu esforço inventivo rumo à reprodutibilidade, de que se destaca a fotografia e a poligrafia. Francis Lee transmitiu ainda a mensagem de Linda Fregni, curadora da exposição “Hercule Florence. Le Nouveau Robinson” (Mônaco, 2017) sobre a atualidade de Hercule Florence: a sua interdisciplinaridade, característica do espírito de 1800, é hoje um caminho essencial para os desafios do século XXI.
Sergio Burgi (IMS) lembrou como Hercule Florence buscou, nos seus inventos, uma síntese entre registos textuais, visuais e sonoros, “podendo ser pensado como o patrono daquilo que Vilém Flusser definiu como o universo das imagens técnicas”. A forma como hoje somos herdeiros dessa revolução cultural, de que Florence foi um inspirado protagonista. Os seus inventos convidam a uma reflexão contemporânea sobre a sua personalidade e percurso, defendeu o coordenador de Fotografia do IMS.
A primeira conversa da manhã reuniu na mesma mesa o fotógrafo, historiador e professor da ECA-USP Boris Kossoy, o fundador do IHF e tetraneto de Hercule, Antonio Florence, e o conservador e curador em fotografia da George Eastman House, Grant Romer. Antonio Florence destacou a honra e a alegria de reunir nomes tão importantes no estudo da obra do seu tetravô. “Faço-o em nome do Instituto Hercule Florence, uma forma de institucionalizar nossos esforços, e em nome de toda a família, que hoje, espalhada por todo o Brasil, conta com mais de 2000 pessoas, porque ele teve uma prole generosa. Para mim, Boris Kossoy, é o representante máximo da nossa família”. Antonio Florence destacou “o trabalho de um grande guerreiro”, Boris Kossoy, que desde a década de 1970 se dedica ao estudo e à divulgação do pioneirismo fotográfico de Hercule. Ainda, o fundador do IHF apresentou os objetos sobre a mesa, três réplicas das câmaras feitas por Hercule Florence, construídas recentemente por Grant e Ariadna Romer, a partir dos manuscritos e desenhos de Hercule. Infelizmente, referiu Antonio Florence, as suas imagens fotográficas produzidas em câmara não sobreviveram, mas apenas as que realizou por contacto, ou em modo "print out", de que restam preciosos exemplares, analisados em Évora por uma equipa internacional, em junho de 2022.
Sobre este percurso na descoberta da fotografia por Hercule conversaram Boris Kossoy e Grant Romer, dois homens que se encontraram pela primeira vez em 1976, no auditório da Eastman House, em Rochester, EUA, quando Kossoy apresentou publicamente o seu estudo pela primeira vez.
“Parece que foi ontem”, afirmou Romer, para quem a fotografia é “uma extensão das nossas memórias visuais”. Ambos os investigadores concordaram que existem muitas descobertas da fotografia, foi um processo múltiplo, com várias paternidades, cada pioneiro alcançando conquistas diferentes, em locais diversos e muitas vezes sem contato entre si. Hercule Florence desenvolveu os seus inventos sem acesso aos centros culturais europeus da sua época, como sublinharam. Boris Kossoy afirmou que, ao divulgar a sua pesquisa sobre as descobertas fotográficas de Hercule, nas décadas de 1970 e 1980, em palestras internacionais, sentiu ainda uma resistência eurocêntrica em aceitar que alguém fora dos limites “da civilização”, entendida como Europa e Estados Unidos, pudesse ser um dos pioneiros da fotografia no mundo. O historiador sublinhou o papel fundamental dos laboratórios da Universidade de Rochester que, na época, em 1976, reproduziram as experiências fotográficas descritas nos manuscritos de Hercule e asseguraram que o seu processo era quimicamente viável, conforme laudo dessa instituição partilhado com o público presente. À medida que os anos passaram, os investigadores mais jovens mostram maior abertura para compreender as múltiplas descobertas da fotografia, afirmou Kossoy.
“Quem é o seu segundo pioneiro preferido?”, desafiou Grant Romer. Sem hesitações, Boris Kossoy referiu Fox Talbot, destacando as semelhanças de método entre os Tabolt e Florence: trabalharam sobre uma matriz de vidro (diferentemente das imagens fotográficas produzidas em câmara), que servia como negativo possível de reproduzir com papel sensibilizado à luz através de compostos químicos e exposição à luz. Mas Kossoy distingue-os também: Florence tinha um propósito social, de desenvolver a reprodução de imagens e textos, disponibilizando essa tecnologia ao meio onde se inseria, enquanto Talbot, num país industrializado, não era movido por esse interesse. Por outro lado, um dos aspectos mais extraordinários de Hercule Florence é ter usado o método fotográfico de contacto na prática, antes do próprio daguerriótipo ser divulgado ao mundo, em 1839, reproduzindo rótulos de farmácia e diplomas maçônicos, que perduram até hoje. Teve também o mérito de aplicar conhecimentos já divulgados sobre a amônia, e aplicá-los à fixação da imagem fotográfica, usando habilmente urina humana nas primeiras experiências. Florence foi também pioneiro no uso da palavra “photographie” em 1833, que John Herschell viria a usar em inglês, apenas seis anos mais tarde.
Boris Kossoy e Grant Romer debateram ainda a importância de revisitar o processo de descoberta da fotografia, numa época em que o digital substituiu o analógico (desde final dos anos 1990-2000) e em que já nos confrontamos com a Inteligência Artificial como possível revolução no conhecimento e na representação. “Produzir imagens é sempre um processo de construção de realidades”, lembrou Boris Kossoy, “existe uma constante mental e ideológica na construção da imagem, a ficção é um elemento constitutivo da realidade, desde a invenção da perspectiva, que se tornou parte da convenção de representação, que modificou o mundo, os criadores e os receptores”. Grant Romer lembrou a evolução do termo fotografia, como antes era apenas considerado uma imagem produzida em câmara, e hoje essa definição deixou de fazer sentido, mantendo que a imagem é sobretudo uma tecnologia de amplificação das capacidades humanas. Florence foi parte dessa aventura, e no momento da sua criação, sabia que ela ia evoluir e ser melhorada, como deixou registado nos seus diários, referiu Grant Romer. “A história é sempre um livro em aberto”.
“Porque tantas pessoas sem contato entre si descobriram na mesma época a fotografia?” – foi uma das perguntas do público. Kossoy sublinhou os méritos da descoberta de Hercule Florence em isolamento dos centros de criação da época. Grant Romer referiu a industrialização e a busca pelos benefícios das patentes como fortes motores dos inventores do século XIX.
No final da sessão que juntou Boris Kossoy e Grant Romer, o Instituto Hercule Florence entregou uma placa de agradecimento a Boris Kossoy pelo trabalho de décadas sobre a obra do antepassado da família.
A segunda mesa da manhã “A história das análises” reuniu os participantes de uma aventura que começou em 2016 e tem muito de acaso. Quando o IHF recebeu uma doação de objetos fotográficos e textuais de Hercule Florence e deparou-se com a necessidade de os estudar. Patricia de Filippi e Millard Schisler foram contactados por Francis Lee, que conhecendo as suas especializações na área da fotografia, recorreu aos seus saberes. Eles foram as primeiras pessoas, fora do IHF, a entrar em contato com estes materiais, que eram, então, ainda de natureza totalmente desconhecida. “Nós, ingenuamente, preparamos um estojo com luvas e lupa e levamos também um microscópio”, conta Patricia de Fillipi. Logo perceberam que estavam a lidar com um material extremamente delicado, cuja observação requeria técnicas e espaço adequado. Depois de uma primeira cooperação com o Laboratório de Biologia Celular, a Universidade de São Paulo (USP), pela mão da Física Marcia Rizzuto, acabou por ser a casa indicada para uma primeira análise.
A investigadora contou que queriam saber que materiais eram identificáveis nos objetos, por que meio tinham sido produzidos, mas isso teria de ser feito por meio de técnicas não invasivas, ou seja, sem tocar nem retirar qualquer amostra. Analisaram rótulos de farmácia e um diploma maçônico com fluorescência de raio x o que permitiu algumas conclusões: os rótulos haviam sido produzidos usando ouro e verificava-se a presença de cloro também, o que corroborava os escritos de Hercule quanto ao processo fotográfico. No diploma, suspeitavam da presença da prata mas aquela técnica não permitia detectá-la. As obras de Hercule seguiram nos dias seguintes para o Mônaco, para integrar a exposição ali organizada. Mas estavam perante uma incrível descoberta e era necessário continuar.
Antes que a pandemia condicionasse o avanço do projeto, o acaso ainda jogou o seu papel, colocando Art Kaplan no caminho de Millard Schisler. Eles se conheceram numa conferência realizada em Nova Iorque e trocaram ideias sobre a evolução das análises dos objetos fotográficos de Hercule, agora numa parceria que passou a incluir o Getty Conservation Institute. Noutra ocasião, em Amsterdam conhecem Antonio Candeias, e o Laboratório HERCULES junta-se ao projeto, permitindo, com os seus equipamentos e especialização em patrimônio, avançar com novas técnicas sobre estes objetos. A reunião de todos estes especialistas, que contaram assim a história do seu encontro, só se daria em Évora, em junho de 2022. O resultado dessa campanha de investigação conduziu a este momento do seminário em que serão divulgados os resultados cientificamente comprovados da obra fotográfica de Hercule Florence.
Confira todas as palestras do Seminário Internacional 190 Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence, realizado nos dias 23 e 24 de maio no IMS Paulista
Iara Schiavinatto, Maria Inês Turazzi, Fernanda Pitta, Livia Melzi, Adrià Julià e Letícia Ramos foram os nomes das mesas apresentadas na manhã do segundo dia do evento realizado no IMS Paulista
Tarde do primeiro dia do evento reuniu especialistas que estiveram em Évora, Portugal, para a realização das análises físico-químicas dos objetos fotográficos de Hercule Florence