Iara Schiavinatto, Maria Inês Turazzi, Fernanda Pitta, Livia Melzi, Adrià Julià e Letícia Ramos foram os nomes das mesas apresentadas na manhã do segundo dia do evento realizado no IMS Paulista
Na manhã do segundo dia do Seminário Internacional 190 Anos dos Experimentos Fotográficos De Hercule Florence, o público pode acompanhar duas conceituadas teóricas da imagem e também um debate com artistas que inspiraram suas obras no trabalho de Florence.
Iara Schiavinatto apresentou a palestra “Algumas questões sobre a materialidade em Hercule Florence”, relacionando a personalidade, a obra e as invenções de Hercule com o espírito científico e naturalista da época em que viveu, no contexto brasileiro. “Florence ocupou-se de novas materialidades visuais por anos em mais de uma direção”, afirmou a investigadora, referindo-se ao seu trabalho de desenhista na expedição Langsdorff, à sua pesquisa para alcançar um meio fácil e completo de impressão, resultando na poligrafia, aos seus estudos de química em busca da impressão pela luz, a fotografia. Referiu ainda que a sua obra visual se articula com os seus testemunhos textuais e com a nomeação dos seus próprios inventos. Nesses manuscritos, Florence procurou documentar o seu pensamento, articulando-o e revendo-o por meio de desenhos, planos e anotações que nos falam de uma vida inventiva e disciplinada. Iara Schiavinatto chamou ainda a atenção para a dimensão social da sua obra, sempre orientada para produzir mudanças no seu entorno, nomeadamente nas conquistas sobre a impressão da cor na poligrafia. Outro aspecto fundamental da sua materialidade visual é marcada pelos registros que deixaram um olhar sobre a diversidade do Brasil, representando etnias e paisagens com as suas marcas distintivas locais, inserindo-se no processo de “tropicalização dos trópicos”. A professora do Instituto de Artes da UNICAMP referiu ainda que o mundo colonial não era indiferente a Florence e que na sua obra há marcas de um espírito humanista e atento às transformações no mundo humano e natural. Nesse aspecto, encontra a pesquisadora a sua atualidade, concluindo: “Isso ajuda a pensar em termos contemporâneos uma política de imagens que leva em conta os diversos dispositivos visuais no tempo do antropoceno e as tantas estratégias de fabricação social de invisibilidades dos subalternizados em escala planetária. Bem como acorda e aguça nossas possibilidades partilhadas de imaginar e nervurar o real num mundo mediado por imagens – entrevisto por Florence.”
A segunda conferência da manhã foi apresentada por Maria Inês Turazzi: “Hercule Florence e ‘a arte de inventar’, entre os séculos XIX e XXI”. A pesquisadora começou por referir o acesso que teve a documentação inédita sobre Hercule Florence em França, que inspirou a sua investigação para um artigo de 2008. Referiu ainda o trabalho do IHF que, nos últimos 15 anos, vem disponibilizando online materiais preciosos para descobrir mais sobre Florence.
A documentação inédita, encontrada no arquivo consular em Nantes, diz respeito às cartas enviadas por Florence ao governo francês solicitando o reconhecimento do invento da poligrafia. A partir dela, Maria Inês Turazzi propôs uma reflexão sobre “a arte de inventar” (expressão do próprio) e a sua atualidade. Florence viu-se a si mesmo como um amigo das artes, conforme título de um dos seus manuscritos (L’ami des arts livré à lui même) refletindo amplamente sobre a prática inventiva, uma noção muitas vezes contraditória. Por um lado, um inventor seria o autor de uma coisa nova, implicando a noção de primazia, genialidade e espírito luminoso, mas também um tipo social cada vez mais comum na época, e por isso ridicularizado como uma figura de criatividade inútil, em busca de reconhecimento e dinheiro. Florence, que via a invenção como a resolução de um problema comum a toda a sociedade, teve de lidar com essas ambiguidades das competências exigidas ao inventor, referiu a investigadora. O papel inimitável, como solução para impressão de notas, ou a poligrafia, motivada por colocar a impressão ao alcance de todos, são exemplos do espírito social dos inventos de Florence. Maria Inês Turazzi sublinhou o seu carácter de autodidata polivalente, permanentemente imerso em leitura, observação e experimentação, bem como de publicitação dos inventos, onde os jornais, no século da imprensa em que vivia, tinham um peso muito grande. “Florence compreendeu que a arte de inventar é atravessada por disputas culturais geopolíticas”, afirmou a investigadora, a propósito da forma como a daguerrriotipia se impôs como a primeira forma fotográfica mundialmente divulgada. “Investindo na escrita de si e na comunicação dos seus inventos, Florence alcançou reconhecimento, não em vida, como esperava, mas na posteridade, o horizonte simbólico de todo o homem de invenções no passado e no presente”, conclui Maria Inês Turazzi.
Depois destas palestras, de natureza acadêmica, a mesa seguinte juntou três artistas contemporâneos que revisitaram as técnicas de Hercule Florence – Adrià Julià, Leticia Ramos, Lívia Melzi – numa conversa moderada por Fernanda Pitta. A moderadora começou por declarar que o modo experimental e investigativo dos três artistas que se aproximaram da obra, figura e legado de Florence, confirmam a possibilidade epistemológica da prática artística, a sua capacidade de colocar perguntas e produzir conhecimento, bem como a atualidade de Florence para refletir sobre inquietações da cultura visual e das imagens hoje em dia.
Lívia Melzi apresentou “Devenir Hercule-2013-2024”, uma pesquisa em torno de Hercule Florence que propunha cumprir duas funções: apresentar a figura de Hercule para outras pessoas, alunos e professores, nos seus estudos em França, na École de Arles, pois sentia que havia um grande desconhecimento numa das principais instituições de fotografia na Europa; pensar nos processos de construção da imagem a partir das práticas do naturalista. Descobriu, entretanto em Paris o caderno de esboços usado por Florence durante a Expedição Langsdorff e foi a partir deste que se colocou perguntas e construiu uma metodologia de trabalho que incluía ações performativas. Depois, em contato com Francis Lee, do IHF, teve acesso às páginas da Ordem Palmiana (comparação entre as formas das palmeiras e as referências clássicas de arquitetura) e da Zoofonia (codificação dos sons dos animais). Estes arquivos motivaram a reflexão intersubjetiva da artista: Hercule, francês, que vai para o Brasil inventar a fotografia, e ela, brasileira que foi para França estudar imagem. Livia Melzi produziu várias imagens experimentais a partir destas reflexões.
Adrià Julià falou do seu contato com Hercule Florence, depois do seu projeto “Ruínas da fala”, a partir de textos de Charles Fourrier, em que explorava a ideia de fracasso e de colonização como utopia: um lugar de potencialidade, mas também uma história e um contexto problemáticos. Em Florence, encontrou outra forma dos conceitos de utopia e fracasso, no seu impulso de trazer soluções práticas para o Brasil da época. O artista partiu dos inventos do papel inimitável e da fotografia, na década de 1830. A reprodução (na impressão fotográfica) e a irreprodutibilidade (da produção de notas de dinheiro) foi um paradoxo que motivou as suas pesquisas, bem como o uso do ouro nas experiências de Florence.
Leticia Ramos quis refletir sobre a relação entre arte e ciência, a imaginação como espaço de resistência, para pensar um mundo possível. O primeiro contato com Hercule Florence chegou pelo livro de Boris Kossoy. A ideia do inventor foi o seu grande estímulo, partindo do diário da Expedição Langsdorff, e de um trecho de texto de Hercule em que expressava o seu maravilhamento da natureza, não apenas um registro objetivo, mas também elementos de fantasia e especulação. Relacionando a Zoofonia, o desenho, os mapas do céu – várias atividades de Hercule – Letícia Ramos produziu a sua própria iconografia da região a que Florence se referia nessa passagem de texto.
Todas as mesas suscitaram animada participação do público, ao vivo e através de perguntas online.
Manhã do primeiro dia do Seminário Internacional Cento e Noventa Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence traz análises científicas realizadas em fotografias do século XIX
Tarde do primeiro dia do evento reuniu especialistas que estiveram em Évora, Portugal, para a realização das análises físico-químicas dos objetos fotográficos de Hercule Florence
Confira todas as palestras do Seminário Internacional 190 Anos dos Experimentos Fotográficos de Hercule Florence, realizado nos dias 23 e 24 de maio no IMS Paulista